domingo, 13 de novembro de 2011

O fiat [1] de Sartre

 
          O texto pesquisado sob o título: O existencialismo é um humanismo de Jean-Paul Sartre, refere-se a “uma transcrição de uma conferência proferida em 1946” [2]. Por causa do positivo impacto causado por Sartre nesta defesa, a referida transcrição foi então publicada.
          Em pesquisas [3], verificaremos que Sartre posteriormente ao ano de 1946 rejeitou tal transcrição. Aqui cabe importante análise, uma vez que ao lermos a obra não é possível admitirmos que alguns anos mais tarde, o próprio Sartre pudesse rejeitá-la. Assim, poderíamos conjeturar que se tratou de um erro da home-page pesquisada[4]: talvez em razão de que Sartre ainda admitisse a necessidade de maior rigor científico antes de publicá-la.
          Uma vez vencida o que pareceu ser uma contrariedade de registro histórica, o que sem dúvida representou um primeiro obstáculo para a compreensão de Sartre, deveremos nos ater em que a leitura de “Existencialismo É Um Humanismo” [5] tem relação de importância fundamental para a ética.
          O fundamento existencialista; a liberdade advinda do não-Deus; o homem intersubjetivo; os juízos e finalmente uma conclusão, são os pontos sumarizados que foram estabelecidos a fim de poder responder o quanto é fundamental esta obra para os propósitos de uma ética contemporânea.
          Portanto, “Existencialismo É Um Humanismo” nos remete a um Sartre bastante completo a ponto de apontar este texto como sendo excelente introdução à leitura sartreana para todo estudante de Filosofia. Será, pois este o meu intento: de procurar argumentações que vibrem o autor no sentido de que o leitor de “Existencialismo É Um Humanismo” estabeleça expectativas próprias a todas, ou qualquer uma, obras de Sartre – e nisto também me incluo.

O fundamento existencialista

          “A existência precede a essência[6], este é pensamento nuclear de Sartre ao expor que, será a partir do existencialismo que “a vida humana é possível[7] Poderá parecer que Sartre esteja justificando o humanismo somente a partir do existencialismo, mas mais do que isto, ele está apresentando uma analogia entre uma existência que precede à essência, sendo que esta essência também pode ser negativa. Assim, se houver uma possibilidade contraditória no existencialismo sartreano será aquela em que: se a essência tem a possibilidade de ser negativa, então porque caracterizá-la naquela própria expressão – a existência precede a essência – como logo após os termos “a existência precede a”, isto é, após existência? Ora, se for assim, então o termo essência em sua negatividade suprimirá o termo anterior (existência), causando então a contradição; assim, se a essência for negativada, então há erro contraditório, ademais, se a questão da essência não for esclarecida adequadamente poderá incorrer na própria extinção do existencialismo. Isto é, mesmo que imaginarmos que o existencialismo nasce como ideia e quando tal ideia vai viver o mundo só se subsistirá através de outro termo: o humanismo. Assim, a demasia em justificar a negatividade da essência poderá incorrer numa importância textual ao próprio termo essência talvez maior que o termo existência. Tal contrariedade observada parece nos dizer que Sartre não tenha se preocupado se a ocorrência desta contrariedade poderia ser relevante ou não, mesmo porque Sartre se apoia naquele existencialismo vindo da angustia kierkegaardiana[8] da relação do eu para com o exterior. Contudo, mesmo assim Sartre parece omitir outra relação do “eu” de Kierkegaard e nisto, Sartre vai diferenciar diametralmente em oposição ao existencialismo de Kierkegaard quando este vai tratar da relação do “eu” com o mundo interior que ocorre pelo desespero e de como ele (Kierkegaard) vislumbra extirpar completamente tal desespero: “[...] orientando-se para si próprio, o eu mergulha, através da sua própria transparência, até ao poder que o criou.[9]. Para o existencialismo de Sartre isto não é possível porque tal poder que crie – e este poder pode ser entendido aqui como Deus – não existe: a existência supera a essência.
          Quando, porém, Sartre vai tratar do humanismo deve necessariamente recorrer à essência, mas não para negá-la, mas para constituir a verdade do existencialismo. Nisto, não que o existencialismo não possa ser humanismo, longe disso – até porque foi demonstrado que, por excelência, o existencialismo nasce como pensamento – porém, o existencialismo terá uma relação equivalente a humanismo na subsistência da essência. Eis aqui o grande desafio sartreano que tal transposição estabelecerá ou não a contradição pré-anunciada, muito embora, mesmo assim esta contradição é uma contradição apenas técnica – textual que não deve invalidar o existencialismo enquanto pensamento filosófico. A menos que a própria característica textual e subjetiva de lidar com diferença entre “natureza humana e condição humana” [10] demonstre que o pensamento de Sartre esteja organizando seu posicionando diante daquilo que a Igreja defenda sobre a natureza de Jesus, então tal característica contida ou tímida de Sartre, em não usar a pena de maneira ingênua diante da Igreja, vai demonstrar que embora já houvesse publicado a obra “Ser e o Nada”, o existencialismo sartreano ainda está formulando um consistente pensamento filosófico para que antes de chegar à sua plenitude deve, tal pensamento, confrontar-se num Armageddon em seu próprio ateísmo. Portanto, explorar tal pensamento filosófico de Sartre é o que se espera que um filósofo persuasivo realize.

A liberdade advinda do não-Deus

          O existencialismo de Sartre trata o homem de tal forma com imenso zelo, cuidado e importância que trabalhará com uma possibilidade, ou hipótese, da ocultação de Deus, para que o próprio homem perceba sua humanidade através daquele traço marcante que chamará de liberdade.
          Quase que em substituição – e isto deve ser motivo de profundo estudo – Sartre vai caracterizando o desespero como um desamparo onde: “[...] se Deus não existe [...] Estamos sós, sem desculpas. [...] o homem está condenado a ser livre.[11] Assim, seria possível deixar o homem a mercê de si próprio. Fazendo aqui uma afirmação um pouco mais contundente, porém não dita por Sartre, seria de tratar Deus como um aprisionador do ser humano: se pensarmos não como o ateísmo pregado no existencialismo sartreano, mas sim como um crente, poderíamos necessariamente chegar à mesma conclusão de que realmente Deus, a partir da visão humana de Sartre, aprisiona o homem, porque Deus é a desculpa do homem – o que nenhum crente realmente pode deixar de afirmar é que Jesus carregou sobre si toda a culpa: “Mas se alguém pecar, temos um intercessor junto ao Pai, Jesus Cristo, O Justo. Ele é a expiação pelos nossos pecados [...][12] – assim o termo liberdade como a liberdade do próprio homem seria contraditório ao próprio crente, por que nisto Deus, então, aprisionaria o próprio ser humano.
          Para centrar no próprio ser humano que nele é ativada a liberdade, então Sartre necessariamente deve abdicar da existência de Deus através de um ateísmo que mantém Deus num estado latente, isto é, que não pode ser perdido de vista. É assimilável, portanto uma visão de ateísmo sartreano muito mais para um não-Deus do que a eterna inexistência de Deus. Nisto podemos conjeturar a partir de seu exemplo textual ciclo vicioso [13], outro ciclo vicioso, agora referente a Deus que se irrompe quando Sartre vai tratar da liberdade do homem.
          É então preferível para Sartre lidar com a questão de Deus como um “looping” ou ciclo vicioso que alterna possibilidades de teísmo e possibilidades de ateísmo como uma questão que não trará nenhum predicado ao homem, por não vir dele mesmo. Daí o interesse de Sartre de manifestar-se ateu. É somente assim que Sartre “mais a vontade” desenvolve seu existencialismo tratando o humanismo como liberdade inerente ao próprio homem. Este humanismo nasce a partir de uma visão absolutamente subjetiva do homem para com si próprio: “[...] o homem nada mais é do que o seu projeto; só existe na medida em que se realiza [...][14].

 O homem intersubjetivo
         É aqui que mais claramente Sartre vai moldando o fundamento ético de seu pensamento o que poderá ser síntese para muito do que se espera do estudo da ética em nossa contemporaneidade.
          O compromisso que estabelece do homem com o outro sendo este considerado por Sartre como: “[...] indispensável à minha existência [...][15] é o que Sartre chamará de intersubjetividade. Contudo a que se velar pela forma e conteúdo do que seja este outro. Pela forma certamente o outro se encaixará no papel necessário que cabe a cada um na responsabilidade a que nossa liberdade nos remete, entretanto, quando tratamos do conteúdo do termo – outro – surge a dúvida: relacionar com o outro não seria o mesmo que adentrarmo-nos muito mais na essência do próprio outro do que em sua existência? Não seria, pois o outro uma nota de questão contraditória acerca do pensamento sartreano? – Interessante notar que ao longo do “Existencialismo É Um Humanismo” Sartre sempre se refere a terceira pessoa do plural, nós quando está justificando as críticas; é justamente este nós que podemos dá-lo em conotação à intersubjetividade humana e aqui residirá uma ponta de refutação à contradição ré-mencionada. Assim, Sartre não poderia estar se contradizendo porque a liberdade é própria do existencialismo e é justamente em seu nós – em um sentido mais a priori, poderia caracterizar muito bem a intersubjetividade. É, pois no homem intersubjetivo que justamente existe aquele nós que ecoa no em si antes mesmo de compreendê-lo fisicamente.

Os Juízos

               Mas, se o engajamento é a palavra de ordem que caracteriza a liberdade, e se o homem possui uma intersubjetividade a priori no que faz se valer em si por nós, então parafraseando Sartre [16]: como estabelecer a liberdade com decisão e engajamento pressupondo aquele nós a priori? O que cada o homem intersubjetivo deve fazer?
          Deve-se o homem, neste instante de criação moral, se valer de razoáveis medidas ou mecanismos mentais de mensuração para comparando e comparando-se seguir na trilha formatada pela sua própria liberdade de decisão. Trata-se de um ponto nevrálgico para o estudo da Ética. Segundo Sartre: “[...] cada um escolhe perante os outros e se escolhe perante os outros [...] isso talvez não seja um juízo de valor, mas é um juízo lógico [...][17].
          Se o juízo é lógico então o existencialismo sartreano vai estabelecer uma crítica à liberdade kantiana na qual “[...] os juízos são funções [...][18]. Assim, Kant baseia seu juízo em uma função lógica a partir das diversas representações do conteúdo: “[...] a lógica geral abstrai de todo o conteúdo [...] e espera que em outra parte qualquer [do sujeito (analítico transcendental)] lhe sejam dadas representações a fim de primeiramente transformar em conceitos [...][19]. Será neste “transformar em conceitos” que Sartre faz a crítica, uma vez que para ele o juízo só pode haver através de uma “invenção” que é própria de uma liberdade tal, que não fique baseada em princípios, mas em ações: “[...] princípios abstratos demais não conseguem definir a ação [...][20]. Quando Sartre lida com estes juízos ele está lidando num mundo “[...] concreto e, por conseguinte, imprevisível [...]” [21]. Portanto, duas morais opostas podem, e não há nenhum erro contraditório nisto, ser equivalentes pela atitude de liberdade. Disto não poderíamos nunca nos precipitar em criar um relativismo, visto que Sartre está buscando o mais a priori possível concretizar a liberdade pelo juízo e nisto a ética é fundamental.

          “Existencialismo É Um Humanismo” é sem dúvida a porta de entrada para uma ética contemporânea. Talvez pelo motivo de tal pensamento venha de encontro a uma justificativa do homem não em razão de qualquer coisa que não seja ele mesmo; também por outro advindo do primeiro que tal pensamento se popularize num mundo concreto de Sartre que para nós poderia residir na ilusão de suas peças teatrais, mas que muito longe disto, não seria a arte sartreana que descaracterizaria consistente pensamento; a popularização de Sartre por pessoas que o consomem para justificarem a si próprias não é, com certeza, o intento de nosso filósofo; ao contrário, Sartre deseja ardentemente elucidar um problema que a resposta não está nele e nem no eu, está em nós. Entender que Sartre dá início a um pensamento absolutamente lindo e que necessita dos mesmos cuidados de que uma flor requer para que exista, será algo que faltará em muitas das pessoas que criarão conceitos políticos a partir de examinar Sartre como se este fosse um fim. Não. Sartre não é um fim. Também a popularização do existencialismo levaria a pseudos-filósofos  iluminados de uma vela e não de um Sol platônico, o que culminaria com pensamentos que retratariam culturas (música, dança, teatro, textos) ainda inconsistentes que capitalistamente seriam midiatizadas desintegrando um Sartre inventor. A popularização deve chegar enfim ao estudante de Filosofia para que possa trabalhar junto com Sartre e de alguma maneira cada vez mais clara conseguir sintetizar Sartre primeiro à Educação. O existencialismo de Sartre deve ser sempre reconstruído quando atacado, ressuscitado quando em nós a liberdade não é compreendida e “fiat” quando nos vemos em mim mesmo.

Referências Bibliográficas
BÍBLIA, JOÃO, Apóstolo. Primeira epístola de São João. Tradução: † Frei João José Pedreira De Castro. 136. ed. São Paulo: Ave-Maria, 2000.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holana. Novo dicionário de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. 687 p.
KANT, Immanuel. Crítica Da Razão Pura. Tradução: Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999, 511 p.
KIERKEGAARD, Søren Aabye. O desespero humano. Tradução: Adolfo Casais Monteiro. Os pensadores, vol. XXXI. São Paulo: Abril Cultural, 1974, 92 p.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Trad. Rita Correia Guedes. USP, Stoa, espaço de Joao Alex Costa Carneiro. Junho de 2011. http://stoa.usp.br/alexccarneiro/files/-1/4529/sartre_exitencialismo_humanismo.pdf (acesso em 21 de Outubro de 2011).


[1]    (FERREIRA 1988. p. 295. (fíat). [Lat., ‘seja’.] S. m. Faça-se; criação.)
[2]    http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean-Paul_Sartre
[3]    Ibidem
[4]    Ibidem
[5]    (SARTRE 2011)
[6]    Ibidem, p. 3
[7]    Ibidem, p. 2
[8]    Ibidem, p. 6
[9]    (KIERKEGAARD 1974, p. 338)
[10]  (SARTRE, 2011 p. 21-22)
[11]  (Ibidem, p. 7)
[12]  (BÍBLIA, 2000, p. 1550 [1Jo, 2, vs. 1-2])
[13]  (SARTRE, 2011 p. 9)
[14]  Ibidem, p. 11
[15]  Ibidem, p. 13
[16]  Ibidem, p. 15
[17]  Ibidem, idem.
[18]  (KANT 1999, p. 103)
[19]  (KANT 1999, p. 107)
[20]  (SARTRE, 2011, p. 17)
[21]  Ibidem, idem.